terça-feira, junho 21, 2005

O mau é chegar lá...

Entro no lar e logo sinto um cheiro nauseabundo a mijo e a tristeza... a iluminação é reduzida e as paredes pesadas e gastas sustentam segredos gigantes, só elas sabem o que se passa lá dentro!

Sinto que o asseio tirou uma férias prolongadas... talvez nunca mais volte ou talvez nunca lá tenha estado. Enquanto caminho até ao 1º piso observo o funcionamento daquela casa, não é hora de visita mas tenho autorização para frequentar o espaço fora desse horário... é uma regalia por morar a mais de 200 km's de distância.

Não sei como é o comportamento daquelas pessoas no horário de visita, mas neste período em que supostamente não está lá nenhum intruso a postura é deplorável! Sem receio e sem respeito pela dignidade dos velhos...

Entro na chamada sala de visitas, que não passa de um corredor estreito e muito comprido instalado numa marquise... as janelas abertas não chegam para arejar a casa e levar nas correntes de ar o cheiro mau e os olhares tristes e vazios daqueles velhos.

Percorro aflita com o meu olhar jovem e fresco, os rostos daquelas mulheres vestidas de negro, excessivamente vestidas, diga- se, para o calor que se faz sentir já àquela hora da manhã... as ventoinas penduradas no tecto giram rapidamente revoltando os cabelos despenteados e sujos, mas nem por isso refrescam o ambiente.

Estão sentadas em cadeiras junto à parede branca... ao 1º olhar o contraste das vestes pretas na parede clara parece- me um código de barras, como se fossem produtos numa prateleira de supermercado... os produtos que ninguém quer e que vão ficando empoeirados, é longa a espera...

Sinto no peito a força da angústia a apertar... não vejo o cara que procuro, onde está ela? Indicam- me o quarto onde ela se encontra deitada e absolutamente só. Quando me assomo à cama nem me reconhece... os seus óculos fortemente graduados estão na gaveta. Ainda bem... espero que não tenha também conseguido reconhecer a minha expressão de horror e as lágrimas que me encheram os olhos, incapaz de as reter aproveito para as secar nas maçãs do rosto enquanto procuro os óculos na mesa de cabeceira.

Contente por me ver avança efusiva na conversa desenrolando de um novelo desdemido um sem número de queixas e dores. Tento ouvir o que me diz, mas ainda estou perplexa com a sua imagem tão magra e tão pequena, tão frágil que bastava soprar com força para a derrubar da cama.

A muito custo conseguimos convencê- la a sair do quarto... escolhemos uma roupa fresca, penteamos o cabelo e sentamo- la na cadeira de rodas. Deixou de comer porque tem dores na boca, deixou de andar porque não tem força... depois de várias quedas entregou- se à cama. A nossa missão estava agora a começar... ainda tínhamos que a convencer a comer e a andar novamente.

Chegada ao corredor as amigas saúdam- na com um sorriso a apressam- se a cumprimentá- la com 2 beijos... a festa dura pouco, logo regressam aos seus lugares como se estivessem em formatura. Regressam ao seu pranto, aos seus pensamentos e os seus corpos voltam ao estado inerte em que se encontravam.

Já não é a primeira vez que lá vou, mas não consigo evitar a sensação de pena e de desassossego que me invade naquele sítio... ao fim de minutos já desejo sair a correr, porém sei que devo ficar porque ela merece que eu fique.

Tudo é velho e condizente com o estado de degradação da vida... os móveis, os mosaicos, a loiça das refeições, os televisores, as ventoinhas e claro, os próprios velhos... sentados, calados, inexpressivos na sua dor e na sua solidão. Limitam- se a existir, esperam por qualquer coisa... ou pelos filhos nas visitas de fim de semana ou por uma força maior que os leve para outro lugar.

Olham para nós de relance enquanto massajamos com creme as pernas cansadas da avó... intimamante anseiam pedir uma massagem para elas, mas não têm coragem ou não se sentem nesse direito.

Adormecem de costas curvadas para a frente... ternamente aconchego- as na cadeira e ajeito- lhes as pernas. Chega a hora da refeição, algumas descem ao piso inferior (piso misto, com homens e mulheres) onde fica o refeitório... outras mais fragilizadas almoçam ali mesmo numa sala pequena. Despejam- lhes a comida nos pratos e desaparecem... agora desenrasquem- se, façam pela vida!

Sem talheres para cortar a carne ou sem força e precisão para o fazer, deixam- na de lado ou comem com a mão... o cenário é terceiro mundista. Apressamo- nos a ir buscar talheres e cortamos em pedaços minúsculos a carne que têm no prato.

Já conseguimos levar a avó a almoçar e a dar uns passos trémulos, hesitantes e receosos... apesar de a ampararmos firmemente tem muito medo de cair outra vez!

Está na hora das despedidas... na minha cabeça oiço as vozes das funcionárias aos gritos com os velhos, sem carinho ou paciência para as suas maleitas. A avó vai ficar entregue aos cuidados daquelas pessoas rudes e completamente despreparadas para aquela função. Sinto a consciência a atacar- me numa luta interior onde não há vencedor... só a tristeza de chegar a velho e ter que viver assim... somente à espera da hora de mudar de mundo.

Queria pegar nela e nos outros velhos e trazê- los comigo... queria que vivessem com a dignidade que a idade e a experiência lhes conferem... queria tanta coisa, mas não posso... nem para a avó, quanto mais para todos os outros que lá estão. Em Agosto virá de férias para cá, mas até lá alguém tem que a "obrigar" a comer e a andar, quem será?

Mais vale não chegar a velho...

1 comentário:

subarrios disse...

Triste o destino das pessoas idosas...
Triste o modo como tratamos o nosso passado...

Triste não é morrer... triste é viver esperando a morte...

Confesso que ao ler o teu post as lágrimas vieram-me aos olhos...